sábado, 3 de agosto de 2024

A História dos Molhos

 

Que os alimentos se deterioram, perdem no ar e no calor a sua pureza, a sua essência, suas propriedades nutritivas, a sua saúde, enfim, o homem primitivo aprendeu muito cedo. Datam da Pré-História as técnicas mais antigas de conservação das comidas. E, embora os jornalistas daqueles tempos ancestrais, os pintores das cavernas, não tenham deixado impressas as suas sensações, pode-se dizer que dava certo.

Torravam-se os cereais sobre as brasas na pedra. Desidratavam-se ao sol frutas e vegetais, fermentava-se o leite com a ajuda de seu soro azedado, salgavam-se as carnes e os pescados, defumavam-se as aves e os traseiros dos veados. Mesmo as colinas de neve, nas terras mais altas, passaram um dia a funcionar como infalíveis preservantes.

Todos esses procedimentos, obviamente, não se provaram de uma vez. Na verdade, surgiram como procedimentos herdados de outros, conhecimentos que aos poucos evoluíram de ideias elementares e até de acidentes ao acaso. Por exemplo, o raio que em certa tempestade abrasou a carcaça de um coelho ou perdiz – e deu-lhe um gosto que o homem primitivo considerou muito melhor do que o sabor pífio do bicho cru.

Nesse quadro, assim, é perfeitamente justo supor que, antes mesmo dos primeiros documentos, já existisse nas velhas cozinhas a arte do molho.

Os especialistas, de qualquer modo, apontam o Oriente de 5 mil anos atrás como a data-base da origem de tais coberturas. Indianos e chineses, sempre interessados em guardar suas iguarias para o

futuro, aprenderam que certas ervas, mescladas na quentura de infusões de água ou mesmo de vinho, mantinham a longa vida de peixes e caças. Melhor: funcionavam como temperos capitosos e emolientes.

Tem essa idade, mais ou menos, o curry indo-paquistanês. Tem essa idade o gengibre das dinastias dos mandarins. Têm essa idade os caldos suaves ou mesmo picantes que, de repente, se transformaram em sopas.

Só nos entornos de 500-400 a.C., porém, foi que os molhos viraram tema, oficialmente, dos livros de gastronomia. Um cozinheiro grego, de nome Sicanus Lebdacus, viu-se, subitamente, às voltas com um problema de morte: se não resolvesse, em uma semana, o drama do mau cheiro que dominava os seus assados, seria dilapidado pelos asseclas de seus patrões, aristocratas de Atenas.

Para salvar-se, Lebdacus afogou um carneiro, devidamente sem pele e sem vísceras, numa mistura de plantas e álcool de uvas. Foi aplaudido em frenesi. Safou-se do apedrejamento. E de quebra constatou que, além de eliminar os aromas nojentos, havia inventado um magnífico ritual. Havia inventado o molho.

Ao menos no Ocidente, Lebdacus havia inventado o molho.

A experiência rapidamente se espalhou e outros cozinheiros da Grécia, Sófones e Rhodios Demóssenos, Suetos e Dímbrones Sículos, desandaram a perpetrar outros caldos, outras infusões.

Receitas que viajariam até o apogeu de Roma e até três gênios de iguais identificações, o Apicius de Scylla, o Apicius de Augusto e o Apicius de Trajano, que não hesitaram em anotar em suas memórias as fórmulas apreendidas dos mestres atenienses. Do segundo Apicius restariam, irretorquivelmente redigidas, as mais venerandas alquimias que até hoje gourmets e cozinheiros de domingo usam na

raiz de suas criações.

Na Milão de 1498, publicou-se um livro, De Re Culinaria, supostamente assinado por ele, Marcus Gavius Apicius, contendo um batalhão de sugestões memoráveis, mesmo para a época e para a tecnologia de agora. Nunca se confirmou a autoria do volume. Isso, todavia, não importa. Vale, sim, o fato de que algo escrito ficou para a posteridade.

Quase cinco séculos após, um italiano bem mais privilegiado pelo progresso, Luigi Carnacina, editaria uma obra fundamental para a cultura da gastronomia: La Grande Cucina. De infinitas utilidades, dedicado à dona de casa, aos cozinheiros de plantão e aos grandes restaurateurs, o livro de Carnacina apresentou como novidade transcendental uma inédita codificação genealógica dos molhos de todos os tempos. Entendeu Carnacina que todas as salse derivavam de quatro únicas matrizes: a vellutata, o Béchamel, o espanhol, o sugo de tomates. Dessas matrizes poderiam brotar quaisquer molhos que se preparassem.

Trata-se, admito, de uma definição compacta e acadêmica. A ela renunciou até mesmo o meu mestre maior, outro italiano, Luigi Veronelli, que em 1974 publicou o seu Il Libro Delle Salse, com quase duzentas páginas de antológicas formuletas. Hoje, no entanto, Veronelli que me perdoe, anoto

aqui que, em minha opinião, Carnacina tinha a sua razão. Seu método de análise e organização dos molhos, ainda que rígido e rigoroso, é mais fácil de compreender do que as teorias exuberantes de Veronelli.

Veronelli subdividiu suas receitas em cinco departamentos: as manteigas, os molhos familiares, os molhos clássicos, os molhos exóticos e as caldas doces. E nessas subdivisões misturou, às vezes confusamente, alquimias à base de carnes e de vegetais, de vinhos e de azeites, prejudicando o entendimento do amador e do não especialista.

Daí, repito, preferir eu, ao menos no conceito, a genealogia de Carnacina.

Neste O Livro dos Molhos, as preparações aparecem hierarquizadas, aproximadamente de acordo com a definição de Carnacina. Não tenho dúvidas a respeito. A partir da genealogia histórica dos molhos fica muito mais tranquilo escolher a cobertura ideal para um prato de massas, crustáceos, peixes, aves, carnes brancas, assados e assim por diante. Também fica muito mais tranquilo cometer cada preciosidade.

Começo, dessa maneira, por anotar as receitas de cinco essências elementares – a essência de carne, o fondo bianco, o fondo bruno, o fumê de peixe e o vino cotto. Por que os títulos estrangeiros? Na sua imensa maioria, as traduções são inúteis ou idiotas. Por isso prefiro, sempre que possível e viável, manter a grafia autêntica de cada nome. O leitor não terá nenhuma dificuldade em relacioná-las com os molhos que determinarão, nem com os pratos que enriquecerão.

Depois, a partir das essências elementares, falo dos molhos-matrizes. Não os quatro de Carnacina, não os clássicos, tradicionais, mas cinco, em meu entender: o Béchamel, o demi-glace, o espanhol, o sugo de tomates e a vellutata. Sim, até o demi-glace, que acredito piamente fazer parte desse time original.

Chega, finalmente, a oportunidade de todos os molhos, explicados e desenhados em função de seus antecedentes e de sua utilidade:

• Os molhos à base de azeite;

• Os molhos à base de ervas, frutos e frutas e vegetais;

• Os molhos à base de manteiga;

• Os molhos à base de tomates;

• Os molhos à base de vinhos e outros produtos alcoólicos.

Outra coisa. O leitor perceberá que, mais discriminadamente, tenho a preciosa preocupação de subdividir ou roteirizar cada capítulo, cada relação de molhos, em departamentos meticulosamente aplicados:

• Molhos frios;

• Molhos quentes;

• Molhos para assados e/ou grelhados;

• Molhos para carnes;

• Molhos para carnes brancas;

• Molhos para crustáceos;

• Molhos para frutos do mar em geral;

• Molhos para massas;

• Molhos para ovos;

• Molhos para peixes;

• Molhos para verduras e/ou vegetais.


Evidentemente, muitos molhos se demonstrarão capazes de várias utilidades diferentes. Ao final das páginas com as receitas, um cuidadosíssimo índice analítico se encarrega de apresentar as eventuais permutações, de acordo com cada aplicação. Por exemplo: molhos que se adéquem a receitas de camarão, de frango, de vitela, et cetera e tal.

Agora, algumas rememorações que me parecem indispensáveis.

Em alguns pratos, como os que levam arroz ou massas, são os molhos, ninguém discuta, os protagonistas, astros principais de cada mistura. Em todos os outros, todavia, os molhos devem, apenas, prolongar o sabor intrínseco da receita, valorizá-la em vez de mascará-la.

Certos cozinheiros principiantes, e até mesmo inúmeros profissionais, sinceramente acreditam que caprichar numa fórmula é exagerar na cobertura ou nos temperos. Peço, antes de começarmos, que os meus amáveis leitores me façam a suprema homenagem de respeitar as composições da forma como estão alinhavadas. Um tico a mais de pimenta, uma gota a menos de vinho, quando essas quantidades aparecem bem discriminadas, apenas desnaturam aquilo que é clássico, antológico pelo sucesso obtido em décadas, séculos até. Não desautorizo eventuais alterações. Na cozinha, afinal, nada mais se cria, tudo se transforma.

Também não pretendo interferir nas predileções de quem me lê – e me respeita. Saibam todos, no entanto, que, com raríssimas exceções de minha lavra (identificadas pela sigla “Brasil, SL”), as alquimias expostas neste livro já foram historicamente provadas. Eventuais modificações são legítimas, desde que recebam um novo e diferente batismo. Quer dizer: trata-se de outros molhos.

Saibam todos, também, que uma boa receita é consequência direta da boa qualidade dos ingredientes que a compõem. Uma única folha de manjericão estragada pode arruinar um pesto genovês. Um único tomate ultrapassado pode estragar um sugo caseiro e suave.

Certos cozinheiros usam os tomates mais rijos em saladas e relegam aqueles machucados aos molhos. Pobres, não passam de tolos – ou criminosos.

Para completar: mas que são, mesmo, os molhos?

Sinteticamente, pode-se afirmar que se formam de três elementos: o líquido, o tempero e os meios de ligação.

O líquido, como já denota a palavra, em geral contém água, ou caldo de galinha, ou caldo de músculo de vaca, ou caldo de peixe, ou suco de carnes várias, ou polpa de tomates, ou leite, ou creme de leite, ou manteiga, ou vinho, ou vinagre, ou óleos, ou azeites, ou até o sangue de alguns animais, juntos ou isolados.

O tempero advém de essências, fumês, ervas e especiarias, pós picantes ou aromáticos, sais, folhas, vegetais.

Os meios de ligação, enfim, são a farinha e a manteiga cruas ou cozidas, as gemas e as claras dos ovos, certas gelatinas.

Importantíssimo: o leitor perceberá que muitos dos molhos deste livro parecerão líquidos demais para as suas preferências. Que ninguém, por favor, incorra na tolice de corrigir alguma aquosidade com a velha maisena ou coisiquinha semelhante. Este livro trata de molhos e não de colas ou gomas. Se houver, repito, se houver necessidade de se engrossar um molho qualquer, utilize-se aquilo que os italianos apelidaram de manteiga maneggiata, cuja receita apresento no capítulo competente. Basicamente, trata-se de um pingo de manteiga transformada em pasta com a adição de  farinha de trigo bem peneirada.

E terminemos com um punhado de últimas recomendações:

• Várias das alquimias desta obra já foram expostas em O Livro do Macarrão. Muitas das várias, porém, foram expostas de maneira sintetizada. Em O Livro do Macarrão, era a massa a grande protagonista. Nesta obra, as composições dos molhos inevitavelmente precisam se mostrar um pouco mais complexas; talvez mais intrincadas. Questão de rigor, de respeito à sua personalidade – e

à sua tradição. Na dúvida, que o leitor opte pelo caminho mais acessível. Dispondo de tempo e de paciência, fique com as receitas completinhas desta obra. Na pressa, não hesite, use a sua liberdade, simplifique – por favor, siga a praticidade de O Livro do Macarrão.

• Todo e qualquer molho deve ser misturado com colheres ou espátulas de madeira previamente fervidas, logo ao serem compradas, para que seu gosto original de celulose desapareça completamente.

• Quase todos os molhos quentes podem ser conservados incólumes na geladeira por no máximo quatro ou cinco dias. Se o leitor desejar produzir grandes quantidades, para uso futuro, aconselho o congelamento – e o posterior descongelamento em banho-maria. Aliás, eu nunca reesquento na própria panela um molho já pronto. Uso sempre e sempre e sempre o banho-maria.

• Todo e qualquer molho apresentado neste livro baseia-se numa receita previamente testada para quatro pessoas. Ou quatro porções. Não aconselho reduções para quantidades menores. Prefiro que sobre, em vez de faltar. Para mais porções, ou pessoas, basta aumentar-se a medida de cada ingrediente na respectiva proporção.

• Quando não existir nenhuma anotação explícita, lembre-se o leitor de refogar os ingredientes iniciais de um molho qualquer em fogo alto – rebaixando a chama assim que lançar na panela os ingredientes líquidos que darão corpo ao conjunto. Todo e qualquer molho se apura melhor em calor moderado e lentamente.

• Lembre-se também o leitor de ferver antecipadamente a água que vier a usar em seus molhos.

Isso ajudará a evaporação do cloro.

• Lembre-se o leitor de secar bem, depois de lavar, todos os ingredientes de seus molhos. Em um quilograma de tomates banhados e não enxutos há, pelo menos, cem gramas de água inútil – quantidade suficiente para modificar completamente o sabor final de um sugo.

• E ATENÇÃO: quando não houver nenhuma menção a respeito da quantidade de sal, utilize-o a seu gosto. De qualquer modo, compreenda que as receitas em que o sal não aparece foram originalmente criadas sem tal tipo de condimento.